O CHAPÉU
(1)Planejei meticulosamente o
assassinato de Manuel Soares. Podia fazê-lo com as próprias mãos; preferi,
porém, contratar um pistoleiro.
(2)Para que Isabel não sofra, ou não
sofra tanto, é imprescindível tirá-lo do caminho. Se eu próprio o matasse, o
complexo de culpa iria atormentá-la, tornando impossível o grande e mais
intenso amor de sua vida, fogo em que se tem consumido lentamente (emagrece e
chora em silêncio, tem os olhos ardidos e o corpo trêmulo) e entre um gemido e
outro de prazer eles haveriam de ouvir seu riso sarcástico e maldoso.
(3)Mas para eliminá-lo da face da
Terra, arrancá-lo da cidade como se fosse uma erva maldita, foi preciso antes
que eu o odiasse. Por isso, dia após dia (somos colegas de repartição),
procurei descobrir nele atitudes dissimuladas, falsidades, orgulho,
mesquinharias que me dessem motivação para levar adiante o meu intento. O ódio
foi alimentando-se do conhecimento. Hoje pela manhã atingiu o limite máximo,
quando entreguei ao pistoleiro a quantia estipulada para o crime.
(4) – Exatamente às 20 horas, todas as
noites, ele sai de seu apartamento na Rua G, prédio 203. Hoje é segunda-feira,
portanto estará vestido de calça de linho branco, camisa azul-marinho e chapéu
de feltro. Preste atenção ao chapéu. É um dos últimos homens a usá-lo nesta
cidade. Atire assim que atravessar a porta de vidro do edifício.
O
pistoleiro recuou e, sem dizer sequer uma palavra, saiu da sala.
(5)Os longos anos de convívio e o
plano longamente arquitetado me possibilitaram conhecer todos os hábitos de
Manuel Soares. Sim, não há possibilidade de engano. Exatamente às 20 horas
estará na calçada, tirará o chapéu e baterá com a mão sobre o feltro (para
retirar o pó), olhará indeciso para ambos os lados e enfim optará pelo direito,
caminhará durante 45 minutos, ora fumando, ora assobiando uma velha canção
portuguesa, e depois retornará ao apartamento. Suponho que antes de dormir
mergulhe a dentadura postiça num copo d’água, displicentemente.
(6)Hoje, durante o expediente,
surpreendi-o agitado em diversas circunstâncias, esfregando mãos com impaciência. Duas ou três vezes foi
ao banheiro, atitude totalmente inabitual. Pressente alguma coisa? E se na hora
H resolver não fazer o seu passeio? E se estiver com cólicas? Um medo
inconsciente? E se no exato momento passar pela rua um sujeito qualquer vestido
de forma semelhante e o meu contratado disparar sobre um inocente?
(7) ão. Absolutamente não é hora de
pensar em tais possibilidades. Manuel Soares será assassinado dentro de cinco
minutos. O relógio da sala avança para o instante fatal.
Kieffer, Charles. Antologia pessoal. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998.