Falemos das flores
(25 de novembro de 1855)
José de Alencar
Falemos das flores.
O que é uma flor?
Será esta criação vegetal que na
primavera se abre do botão de uma planta?
Não: a flor é o tipo da perfeição, é a
mais sublime expressão da beleza, é um sorriso cristalizado, é um raio de luz
perfumado.
Por isso há muitas espécies de flor.
Há as flores do vale - mimosas criaturas
que vivem o espaço de um dia, que se alimentam de orvalho, de luz e de sombras.
Há as flores do céu - as estrelas, - que
brilham à noite no seu manto azul, como os olhos de uma linda pensativa.
Há as flores do ar - as borboletas, -
que têm nas suas asas ligeiras as mais belas cores do prisma.
Há as flores da terra - as mulheres, -
rosas perfumadas que ocultam entre as folhas os seus espinhos.
Há as flores dos lábios - os sorrisos,
lindas boninas que o menor sopro desfolha.
Há as flores do mar - as pérolas, -
filhas do oceano que saem do seio das ondas para se aninharem no seio de uma
mulher morena.
Há as flores da poesia - os versos, - às
vezes tão cheios de perfumes e de sentimentos como a mais bela flor da
primavera.
Há as flores d'alma - os sentimentos, -
flores a que o coração serve de vaso, e as lágrimas de orvalho.
Há as flores da religião - as preces, -
modestas violetas que perfumam a sombra e o retiro.
Há as flores da harmonia - os gorjeios -
que brincam nos lábios mimosos de uma boquinha sedutora.
Há as flores do espírito - os
ziguezagues, - que nascem sobre o papel como rosas silvestres e sem cultura.
(Não falo dos nossos ziguezagues, que,
quando muito, são flores murchas).
Há enfim uma espécie de flor que é tão
rara como a tulipa negra de Alexandre Dumas, como o cravo azul de Jean-Jacques,
como o crisântemo azul de George Sand.
É a flor da vida, este sonho dourado,
este puro ideal a que todos aspiram e de que tão poucos gozam.
Porque a flor da vida apenas vive um
dia, como as rosas da manhã que a brisa da tarde desfolha.
E quando murcha, deixa dentro d'alma os
seus perfumes, que são essas recordações queridas que nos sorriem ainda nos
últimos tempos da existência.
Para uns a flor da vida nasce nos lábios
de uma mulher; para outros no seio de um amigo.
Feliz do caminhante que à beira do
bosque por onde passa colhe esta florzinha azul, espécie de urze cingida de uma
coroa de espinhos.
Muitas vezes, depois de muitas fadigas,
quando já tem as mãos feridas dos espinhos, e que vai colher a flor, ela se
desfolha.
O vento soprou sobre ela, ou um verme
roeu-lhe os estames.
Até aqui os meus leitores têm visto o
mundo pelo prisma de uma flor; mas não se devem iludir com isso.
Algum velho político de cabelos brancos
lhes dirá que isto são simples devaneios de uma imaginação exaltada.
A flor é a poesia, mas o fruto é a
realidade, é a única verdade da vida.
Enquanto pois os poetas vivem à busca de
flores, os homens sérios e graves, os homens práticos só tratam de colher os
frutos.
Eles veem desabrochar as flores, exalar
os seus perfumes, e esperam como o hortelão que chegue o outono e com ele o
tempo da colheita.
E na verdade, a flor encerra sempre o
germe de um fruto, de um pomo dourado, que outrora perdeu o homem, mas que é
hoje a sua salvação.
A explicação disto me levaria muito
longe, se eu não me lembrasse que até agora ainda não escrevi uma linha de
revista, e ainda não dei aos meus leitores uma notícia curiosa.
Mas, a falar a verdade, não me agrada
este papel de noticiador de coisas velhas, que o meu leitor todos os dias vê
reproduzidas nos quatro jornais da corte, em primeira, segunda, e terceira
edição.
Poderia dizer-lhe que depois da epidemia
vai-se revelando uma outra epidemia de divertimentos, realmente assustadora.
Fala-se em clube artístico, em baile
mascarado no teatro lírico, em passeios de máscaras pelas ruas, numa companhia
francesa devaudevilles, e em mil outras coisas que tornarão esta bela cidade do
Rio de Janeiro um verdadeiro paraíso.
Neste tempo é que os folhetinistas
baterão as asas de contentes, e não terão trabalho de escrever tiras de papel;
preferirão ir ao baile, ao passeio, ao teatro, colher as flores de que hão de
formar o seu bouquet de domingo.
Enquanto porém não chega esta bela
quadra, essa primavera dos nossos salões, esse abril florido da nossa
sociedade, não há remédio senão contentarmo-nos com o que temos, e em vez de
rosas, apresentar ao leitor as folhas secas do ano.
A respeito de teatro, não falemos; é uma
casa em cujo pórtico (digo pórtico figuradamente) a prudência parece ter
gravado a inscrição de Dante: — Guarda e passa.
Se desprezais o aviso e entrais, daí a
pouco tereis razão de arrepender-vos.
Sentai-vos em uma cadeira qualquer: a
vossa direita está um gruísta; a vossa esquerda um chartonista.
Levanta-se o pano: representa-se a Norma
ou a Fidanzata Corsa; canta uma das duas prima-donas, uma das duas prediletas
do público.
— Bravo! grita o gruísta entusiasmado.
— Que exageração! diz o chartonista
estirando o beiço.
— Divino!
— Oh! é demais!
— Sublime!
— Insuportável!
E assim neste crescendo continuam os
dois dilettanti, de maneira que o vosso ouvido direito está sempre em completa
oposição com o vosso ouvido esquerdo.
Cai o pano.
No intervalo conversai um pouco com os
vossos vizinhos.
— É preciso ser completamente ignorante,
diz o gruísta com o aplomb de um maestro, para não se apreciar a sublimidade do
talento desta mulher!
Vós, meu leitor, que não quereis assinar
um termo de ignorante, não tendes remédio senão confessar-vos gruísta, e em
lugar de dois pontos de admiração dais três.
— Com efeito, é uma artista exímia!!!
Apenas acabais a palavra, quando o
chartonista vos interroga do outro lado.
— É possível que um homem de gosto e de
sentimento admita semelhantes exagerações?
Ficais embatucado; mas, se não quereis
passar por homem de mau gosto, deveis imediatamente responder:
— Com efeito, não é natural.
Daí a um momento o vosso vizinho da
direita retruca:
— Veja, todos os camarotes da 4a ordem
estão vazios.
— É verdade!
Torna o vizinho esquerdo:
— Com esta chuva, que casa, hem!
— Boa!
Agora acrescentai a isto as desafinações
do Dufrene, a rouquidão do Gentile, os cochilos do contra-regra, e fazei ideia
do divertimento de uma noite de teatro.
Ao correr da pena. 2ª edição São Paulo:
Melhoramentos, s/d.