Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é
preciso."
Quero para mim o espírito desta frase, transformada
A forma para a casar com o que eu sou: Viver não
É necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande, ainda que para isso
Tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso
Tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho
Na essência anímica do meu sangue o propósito
Impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
Para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
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Comentário
Além de interpretar seus diversos heterônimos, Pessoa era também mestre em
interpretar palavras e simbolismos, de modo que muitas de suas poesias têm
vários graus de interpretação – geralmente (mas não necessariamente) um mais
profundo do que o outro, como nesse caso.
Esta é a origem da frase citada no poema: "Navigare necesse; vivere non est necesse" - latim,
frase de Pompeu, general romano, 106-48 aC., dita aos marinheiros, amedrontados,
que recusavam viajar durante a guerra (cf. Plutarco, in Vida de Pompeu).
A primeira interpretação que muitos chegam,
principalmente em focando somente a frase e não o contexto do poema, é a de que
navegar, explorar o mundo ou até mesmo ser um guerreiro disciplinado é mais importante do que viver uma vida rotineira,
sedentária e monótona.
A segunda interpretação envolve um olhar das
entrelinhas da etimologia do jogo de palavras nesta frase. Nesse caso, navegar é preciso no sentido de ser uma atividade, uma
ciência precisa; Já viver não é preciso no sentido de que a
vida envolve não somente o lado racional, como também o emocional e o
espiritual – viver não é nem nunca será, portanto, uma atividade precisa. Viver
é deliciosamente ou terrivelmente impreciso, dependendo dos olhos de quem vê.
A interpretação derradeira e mais profunda (na
minha opinião é claro) no entanto envolve parte do conceito das interpretações
anteriores, com algo a mais. Pessoa quis dizer
que para engrandecer sua pátria e colaborar com a evolução da humanidade, não
lhe é necessário viver a vida egoisticamente como se esta fosse somente sua, e
sim dedicar a vida – ou “perdê-la” – em prol da humanidade como um todo (sua
pátria é o mundo e não Portugal).
Qualquer semelhança com alguns ensinamentos de
Jesus não é mera coincidência. Mas além disso
podemos ir um pouco mais além: a vida continua sendo imprecisa, mas navegar pelo oceano do mundo é mais necessário
do que viver ancorado a sua aldeia (e
dogma) local. O misticismo de sua Raça (com “R” maiúsculo) não é o misticismo
dos portugueses ou dos homens de “raça branca” (na verdade raça não existe,
apenas a espécie homo sapiens), mas o misticismo
dos grandes sábios – esses que, como desejava Pessoa um dia o ser, viveram não
para si, mas para toda a sua Raça.
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Extraído da Internet em 17/10/2015