Ardina
Aquele
rapazinho que todas as tardes, ao fim da tarde, anda a vender jornais por entre
carros que estão quase a parar, que estão quase a arrancar, na faixa central da
Avenida, não repara que a morte lhe passa tangentes constantes. É decerto um
rapazinho que ainda não conhece nada da morte, nem mesmo quer saber se ela existe.
Sabe-se leve e rápido, sabe que tem bons reflexos. Por isso, arrisca. Ao menino
e ao borracho, diz o povo... Mas eu lembro-me, sempre que o vejo, sempre que
por uma ou por outra razão subo a Avenida dentro de um dos traçadores de
tangentes (não quero pensar em secantes), de um conto que li em tempos, porque
ai esta nossa cultura livresca... Não sabíamos nada, ainda pouco sabemos, das
pessoas vivas, de como elas vivem e lutam, mesmo só aqui, nesta nossa cidade,
grande e confusa cabeça do corpo frágil que é Portugal, e vamos recordar um
ardina de papel, um rapazinho pequeno encontrado há muitos anos num livro,
brasileiro ainda por cima. Era também, salvo erro, um rapazinho numa cidade
grande, um menino de periferia, do morro, talvez. Ao que me lembro vendia
jornais e pendurava-se nos eléctricos para chegar mais depressa ou talvez por
aventura, sim, creio que era por aventura, que o fazia. Até ao dia em que caiu
e a aventura terminou. Recordo esse ardina dentro de um livro, ao olhar para
este, dentro da vida, e a brincar - a brincar? - com a morte, ziguezagueando,
por entre ela, enquanto apregoa os jornais da tarde.
Cuidado
menino, estou quase a gritar. Mas nunca vou a tempo. Porque a luz está, de
súbito, verde, e ele está, de súbito, longe. Dir-se-á que andam à mesma
velocidade, ele e a luz.
Maria Judite
Carvalho,
O Homem do Arame (1979)
Nenhum comentário:
Postar um comentário